segunda-feira, 16 de junho de 2008

Álvaro de Campos

Este poema de Fernando Pessoa tem um grande significado para mim,porque sinto-o um pouco meu. Que o génio me desculpe lá da sua torre de marfim , sou apenas um pequeno grão de areia sem pretencionismos alguns .Desculpem-me ser em jeito de prosa.
O "Aniversário" faz-me chorar .


Alvaro de Campos (Fernando Pessoa)

ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar pela vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim mesmo, O que fui de coração e parentesco, O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho...) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!... O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... 15/10/1929 (publicado na Presença, nº 27, Junho-Julho de 1930)